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O OFÍCIO DA CRIANÇA-ATOR: Análise da Atuação da Criança na Linguagem Teatral e Cinematográfica


Por Tiago de Brito Cruvinel (Doutorando do Instituto de Artes da Universidade de Brasília – UnB)

e

Por Jorge das Graças Veloso (Professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília – UnB)


Pouca energia foi gasta para entender o trabalho da criança-ator, se compararmos as pesquisas sobre o ator adulto, em que é possível estudar as múltiplas técnicas, os diversos treinamentos, as preparações que dizem respeito a este ofício. O que percebo é que diretores como Stanislavsky, Grotowski, Barba, Peter Brook e Ariane Mnouchkine estão interessados no ofício do ator, no trabalho do ator, em desvendar os diversos “mistérios” e desafios que envolvem esta profissão. Seria então possível começarmos uma discussão sobre o ofício da criança-ator?


Tenho consciência de que os “críticos” dirão que não, porque a criança não pode trabalhar, o trabalho infantil é crime, o que concordo plenamente. Mas então por que vemos crianças atuando no cinema, na televisão e no teatro? O que ocorre de fato que garante que as crianças podem atuar em determinados contextos sem que isso seja considerado trabalho infantil?


Tentarei sinalizar a forma como vejo esta problemática, utilizando o pensamento do professor Manuel Jacinto Sarmento, da Sociologia da Infância, que argumenta que a infância não é a idade do “não-trabalho”. Assim sendo, a infância não é a idade da não fala: todas as crianças, desde bebês, têm múltiplas linguagens (gestuais, corporais, plásticas e verbais) pelas quais se expressam. [...] A infância não é a idade do não trabalho: todas as crianças trabalham, nas múltiplas tarefas que preenchem os seus cotidianos, na escola, no espaço doméstico e, para muitas, também nos campos, nas oficinas ou na rua. A infância não vive a idade da não infância: está ai, presente nas múltiplas dimensões que a vida das crianças (na sua heterogeneidade) continuamente preenche (SARMENTO, 2008 p. 35-36).


O que Sarmento nos coloca e o que me chama atenção é quando ele diz que a infância “não é a idade do não-trabalho”, colocando que todas as crianças trabalham. Isso por si só já é uma quebra de paradigma, afinal colocar as múltiplas tarefas que as crianças fazem, como ir à escola, fazer a lição de casa, ter aula de natação, assumir compromissos, tudo isso, como trabalho, não deixa de ser inovador do ponto de vista sociológico. Mas acredito que, para Sarmento, esse “trabalho” está vinculado muito mais a assumir compromissos, obrigações, do que ao trabalho do adulto. Sarmento coloca que a infância não é a “idade do não-trabalho” e, a meu ver, é a partir deste ponto de vista, que algumas produções no cinema, na televisão e no teatro se articulam. Acreditam, e eu também, que os trabalhos artísticos desenvolvidos seguem a linha de raciocínio do comprometimento necessário que a criança deve ter, como se ela estivesse indo para uma aula de natação, ginástica ou piano. Ou ainda, estes trabalhos entram como mediador e potencializador da criatividade e do estímulo ao músculo da imaginação, no aspecto da formação social e cidadã da criança. No entanto, reconheço que esta é uma questão extremamente complexa, visto que é importante saber até que ponto estas produções estão vendo a criança do ponto de vista do Sarmento, ou da exploração do trabalho infantil.


Mas o que quero que fique claro é que, quando me propus estudar o ofício da criança-ator, quis estudar a atuação (jouer, to play), para que eu pudesse aprofundar os processos pedagógicos que são utilizados em algumas obras e que me auxiliaram a entender a singularidade da atuação da criança-ator. Afinal, seja ofício ou não, não podemos desmerecer que a criança, há muitos anos, principalmente no cinema, tem ocupado espaços legítimos dentro dessa linguagem e que pouco se escreve sobre os processos que envolvem o treinamento, os ensaios e o casting das crianças-atores.


Mesmo definindo que o foco do meu estudo é a atuação das crianças-atores, partindo do trabalho que elas desenvolveram em algumas obras, entro num dilema. O que se entende por ser ator? Não existem múltiplos tipos de atores? Em que medida uma criança se torna uma criança-ator? Definir o que vem a ser ator não é uma tarefa fácil. Para isso, utilizo o exemplo de Peter Brook:


Peçam a um voluntário para caminhar de um lado para outro de um espaço. Qualquer pessoa consegue. Até um perfeito idiota é capaz de fazê-lo, só tem que andar. Não precisa fazer esforço, nem merece recompensa. Agora peçam-lhe para imaginar que está carregando nas mãos um jarro precioso e tem que caminhar com cuidado para não derramar uma só gota de seu conteúdo. Qualquer um também pode realizar este exercício de imaginação e locomover-se de um modo mais ou menos convincente. Mas, como nosso voluntário já fez um esforço maior, talvez mereça agradecimentos e até uns trocados como recompensa pela tentativa. Em seguida, peçam-lhe para imaginar que durante a caminhada o jarro escorrega de suas mãos e se espatifa no chão, derramando o conteúdo. Aí ele vai se complicar. Tentará interpretar a cena e seu corpo possuído pela pior espécie de atuação artificial, amadorística, tornando a expressão de seu rosto “teatral” – ou seja, horrivelmente falsa. Realizar esta ação aparentemente simples de modo que pareça tão natural como uma simples caminhada requer toda a competência de um artista altamente profissional (BROOK, 2008, p. 7-8).


Percebo, com este exemplo, que um artista altamente profissional, um ator, se diferencia de um voluntário, para não dizer amador, na medida em que o primeiro é capaz de ir além da imitação. De modo que não se possa distinguir se sua ação foi real ou “inventada”. O ator, portanto, é aquele que cria uma vida paralela.


É lógico que seria muito simplista de minha parte colocar a ideia de Peter Brook como verdade absoluta em todos os processos. Cada diretor pode, e é natural que o faça, definir o que é ser ator, a partir da sua própria experiência, vivência e trabalho. Reconheço que existem múltiplos tipos de atores e, ainda, que o próprio Brook pode ter modificado a sua noção de ator, a partir dos seus novos estudos, mas fixo-me nesse momento e nesse livro, quando, nessa época, ele pensava assim. Portanto, gostaria de deixar claro que toda vez que me referir ao ator, estarei seguindo a linha de raciocínio de Peter Brook.


Com este problema “resolvido”, definindo o que estou entendendo por ator, trago outra questão que diz respeito à atuação dos atores. Se pegarmos, por exemplo, alguns preparadores de cinema, como Fátima Toledo, e diretores de cinema, como Mário Bortolotto, que já trabalharam com crianças-atores e com atores profissionais, eles vão se diferenciar muito na forma como trabalham, e isto implica diretamente na maneira de enxergar o que é atuação para eles. Fátima Toledo afirma que “nunca suportou ver uma cena em que os atores demonstrem estar atuando: “Tenho ojeriza a isso, faz com que eu perceba que estou vendo um filme, e não vivendo uma experiência” (apud FRAIA, 2009, p. 6). É evidente que o trabalho de Fátima Toledo já resultou em obras maravilhosas como, por exemplo, os filmes Cidade de Deus, Pixote e Tropa de Elite. Mas no que condiz a “atuar”, entendo maneira que não se adequa ao seu pensamento. Apenas discordo da forma como ela enxerga a “atuação”, concordando e dialogando muito mais com o diretor Bruno Barreto, para quem “não é preciso transformar o ator em um farrapo humano para que ele renda bem”, ou ainda, “Fátima pega o não-ator, faz os caras repetirem o que fazem na vida real, parece que é trabalho de ator, mas não é [...] nem sempre a verdade é verossímil. Tem ator que chora facilmente, mas isso não significa que vamos ter uma boa cena” (apud FRAIA, 2009, p. 7).


Um exemplo do que estou falando é quando, na preparação da atriz Simone Spoladore, no filme Desmundo, de Alain Fresnot, em um dos exercícios sugeridos por Toledo, Simone deveria ficar num quadrado de fita crepe, de olhos vendados, durante horas. A preparadora partiu de uma cena do roteiro, onde a personagem é presa em um porão, isto porque ela queria que viesse à tona a loucura da própria pessoa.


É a prisão da própria Simone que vai preencher o filme. Quando o ator olha para a referência da prisão que tem, ele começa a construir. Agora, se você fica dentro do quadrado, sem fazer nada, vendado, tem uma hora que você grita. Que porra é essa, me tira daqui [...]. Quero que a prisão se torne algo físico (TOLEDO apud FRAIA, 2009, p. 8).


O trabalho do ator, que defendo, consiste justamente na capacidade de atuar um “outro”, de criar personagens, de criar essa “vida paralela” à la Brook. Eu me identifico muito mais com a ideia da emoção imaginária de Merleau-Ponty, em que a emoção não deva vir da “memória emotiva”, ou até mesmo de situações como a proposta por Toledo, mas sim, por meio do imaginário.


Para Merleau-Ponty (2008), a emoção do ator é a emoção imaginária, termo com o qual concordo plenamente. Não vejo problema em o ator construa a cena, atuando e utilizando a sua imaginação, o que pode partir ou não de suas próprias referências. Não enxergo a “atuação” como algo negativo, pelo contrário, aqueles que conseguem atuar de maneira genuína e verossímil são os que me interessam. E ainda, seguindo o raciocínio de Ryngaert, ao falar do jogador, acredito que “a aptidão principal do jogador consiste em tentar experiências que tenham a ver com a realidade sem se fundirem com ela” (2009, p. 60).


Dirigir crianças-atores é perceber que tudo que elas fazem é pela intuição. A criança não possui técnica, ela não estudou em uma universidade, em um curso técnico preparatório. No máximo, ela pode ter feito uma oficina ou um curso paralelo aos estudos formais na escola. Durante várias cenas, na direção do curta-metragem “O Pé de Bico” (2013)2, percebi que não precisava ficar falando para o Octávio (6 anos de idade), a criança-ator principal, faça “assim, assim, assim, ou assim”; eu simplesmente dava a indicação e ele seguia sua intuição, via imitação, essa que nada mais é do que um resgate da memória corporal e da ativação da emoção imaginária (Merleau-Ponty), algo próximo ao que Brook e Mnouchkine chamam de músculo da imaginação.


Merleau-Ponty (2006) irá dizer ainda que a entrada na herança cultural da criança é por meio da imitação e da inteligência, ou seja, por meios quase dramáticos de imitação do adulto. No que tange ao estudo da atuação das crianças, esta informação é importante. Na medida em que, para as crianças, imitar é uma forma de entrar na herança cultural, percebo que imitar não é simplesmente reproduzir qualquer coisa. É uma ação para se aproximar das coisas do mundo, ganhar vocabulário, além de exercitar o músculo da imaginação e a inteligência humana.


Eu diria ainda que, do ponto de vista da atuação das crianças-atores, é exatamente como se dá essa imitação “quase dramática”, potencializada no palco e no cinema, que me interessa. Se, por exemplo, considerarmos o Octávio, protagonista do filme, esta foi a sua primeira experiência artística; até aquele momento, ele não havia tido nenhum outro tipo de contato com nenhum processo criativo e artístico. Como fazer para dirigi-lo? Em “tese”, ele não conseguiria, por não ter o “estudo”, a “técnica” necessária, mas não foi isso o que aconteceu, o Octávio se mostrou bastante presente, participativo e sabendo lidar muito bem com a construção do filme.


Percebo que essa imitação sugerida por Merleau-Ponty de fato ocorre quando se trata também da atuação das crianças, isto porque vejo que, no momento em que eu dava as indicações para o Octávio, sentia que ele buscava nas suas “memórias”, imaginárias ou não, algo próximo do que Stanislavsky (1982) chamou de “memória emotiva”, para fazer surgir as ações do seu personagem. Esta imitação, do meu ponto de vista, está vinculada diretamente à intuição. Parece-me que, mesmo sem a “técnica”, por meio da intuição, as crianças conseguem responder cenicamente àquilo que o diretor ou preparador lhes está pedindo.


Voltando à ideia de transformar o ator em “um farrapo humano”, pensando na criança-ator, imaginemos que fizéssemos ela viver as situações como: violência familiar, guerras, questões de gênero, para valer, como se realmente elas tivessem acontecido. Isto teria um reflexo positivo na formação desta criança? O trabalho que venho desenvolvendo é todo pautado na brincadeira, na capacidade de brincar. Penso que dirigir uma criança pode se pautar neste princípio, em que tudo não passa de um grande jogo, não havendo a necessidade dessa fusão, como Ryngaert indica, entre a realidade e o que é proposto em termos do jogo. Por isso, acredito na atuação atrelada ao brincar, na capacidade da criança entrar e sair do espaço potencial de Winnicott, para quem o espaço intermediário – ou potencial – vai sendo construído na própria relação da mãe com a criança. Percebe-se aí a capacidade da criança de entrar e sair desse espaço, distinguindo fantasia de realidade. “A brincadeira, na verdade, não é uma questão de realidade psíquica interna, nem tampouco de realidade externa” (WINNICOTT, 1975, p. 134). Ou seja, são crianças-atores aquelas que conseguem entrar e sair desse espaço sem dificuldades. É exatamente isso que compreendo que um ator adulto faz. Ele consegue entrar e sair de um espaço imaginário e se colocar em situação de jogador.


Isto me parece ser mais interessante e menos “prejudicial” às crianças. Portanto, a forma como o preparador e o diretor entendem por atuação acaba por imprimir a sua marca no filme, por isto, trago o exemplo da preparadora Fátima Toledo. Reconheço que diretores importantes como Walter Sales consideram que “um elenco preparado por Fátima adquire ‘uma densidade’ rara. Nenhum ator mente. Todos passam a habitar os seus personagens de forma visceral” (SALLES apud FRAIA, 2009, p. 9). É justamente essa visceralidade que questiono ao se trabalhar com crianças, se ela é realmente necessária. Talvez para o ator adulto, que se identifica com este processo, ela possa fazer todo o sentido e pode ser válida, mas se tratando de crianças, temos sempre que tomar certos cuidados e precauções, para que o processo criativo não surta nenhum reflexo negativo nelas.



Criança em cena x criança-ator


Para exemplificar a diferença entre criança em cena das crianças que atuam (crianças-atores), apresento a figura das crianças nas obras do diretor italiano Romeo Castellucci. Em Tragedia Endogonidia (2010), um bebê é deixado sozinho no centro de um palco com uma bola. Vejamos o que Lafrance3 (2012) diz sobre isso:


No episódio de Tragedia endogonidia em Bruxelas, um bebê havia sido deixado só no centro do palco, sentado, incrédulo, durante vários minutos. [...] A criança induz uma tensão, consequência da imprevisibilidade dos seus gestos e impulsos. Nós prestamos atenção nos seus mínimos reflexos. A atenção se concentra sobre suas reações diante de tudo o que se desenvolve em torno dela. Aqui, o bebê olha assustado, fixando o seu olhar em algum lugar do palco, em busca de um elemento familiar. Bastaria que ela deixasse escapar a bola de suas mãos, para que nós retesemos nossa respiração, ansiosos para ver como ela iria reagir [...] Para nossa surpresa, a cada nova produção, nós nos encontramos na presença do inesperado (sobre uma cena de teatro, é claro): que apresentam elementos cenográficos inusitados, como um piano em chamas, animais mortos ou vivos, ou ainda... crianças, a experiência é frequentemente desorientante. A criança está ali quase o tempo todo, ainda que isso seja de maneira furtiva ou destacada. Presença desestabilizante que nos faz questionar sobre a nossa relação com o teatro e sobre as nossas expectativas: quando a criança entra em cena na obra de Castellucci, o que era ilusão cai e nós sentimos que não é mimesis, que a criança não está atuando [jouer] a criança, mas o que se encontra diante de nós é uma parcela [fragmento] do real. É ao menos isso, que pretende o diretor: “A presença da criança coloca em questão as leis do teatro ocidental. De repente, todos nossos códigos de representação se desmoronam.” Sonho ou realidade? (2012, p. 90-91, tradução minha).


A ideia de colocar, no teatro, animais vivos ou mortos em cena, de queimar um piano, de colocar crianças em cena, tudo isso como parcela do real, parece-me provocadora. E quando digo isso, não estou querendo dizer no sentido pejorativo, como se a obra fosse menor por ser provocadora; pelo contrário, acho que a forma como Castellucci entende o teatro nos ajuda a fazer várias reflexões, principalmente no que diz respeito ao teatro contemporâneo.


Quando o diretor diz que “a presença da criança coloca em questão as leis do teatro ocidental”, justamente porque os códigos que temos de representação passam a não existir, a se desmoronar, fico bem intrigado com essa afirmação. Parece-me que, para ele, só tem sentido as crianças em suas obras porque elas não são colocadas para atuar um outro [sendo um “outro”, criando personagens], mas sim, sendo elas mesmas, como parcelas do “real”.


Em um outro espetáculo chamado Inferno (2008), somos surpreendidos por vários atores adultos diante de um espelho. Vemos esses atores se olhando e, aos poucos, eles vão saindo, descortinando o espelho, aparece um grande cubo transparente com várias crianças entre dois e quatro anos, simplesmente brincando. Dentro desse cubo, microfones fazem com que seja possível, de maneira potencializada, ouvir todas as risadas, os gestos e os movimentos das crianças.


Neste momento, é importante percebermos que as crianças representam a “parcela do real”, existe uma força imediata, e, são as suas objetividades, perante o espectador, que as tornam tão interessantes quando observadas na cena. Talvez por isso, “a criança seria como o resultado da visão de Castellucci sobre o ator e o teatro: fazer aparecer o imprevisível para surpreender durante a obra que está sendo realizada.” (LAFRANCE, 2012, p. 96, tradução minha).


Contudo, ainda que vejamos crianças no palco, não se tratam de crianças-atores. Mas por que digo isso, não são crianças fazendo “teatro”? O fato é que ele colocou as crianças, nos exemplos citados, como “parcelas do real”. Ele encontra um fragmento da realidade e o coloca em cena. Ainda que esse fragmento não se torne a realidade tal como ela se apresenta na sociedade, porque não estamos vendo as crianças brincando na escola, ou em casa, e sim, em um grande cubo transparente colocado no palco de um teatro. Ainda assim, não existe a ideia de atuar um “outro”. As crianças são colocadas ali para brincarem.


A criança convoca em cena o imprevisível e a dúvida no espectador. Uma questão extremamente atual que diz respeito ao “real” em cena. A imprevisibilidade dos gestos daquele bebê, que não podem ser premeditados, justifica muito bem a noção de criança-ator.


É inegável que, neste espetáculo, existe uma criança em cena, mas aquele bebê não poderia ser mais do que um bebê, não existe naquela cena a construção da ideia de atuar um “outro”. Novamente o que temos é a presença da criança sendo utilizada como parcela do real. Ou seja, existe uma grande diferença entre crianças em cena e crianças-atores.


Utilizando apenas esses exemplos, não generalizando a obra do diretor e muito menos dizendo que em seus espetáculos não existam crianças-atores, pelo contrário, é possível ver, até mesmo no próprio Inferno, que outras crianças conseguem trazer essa noção; ou ainda no espetáculo Purgatório, em que uma criança é a protagonista da história, verifico que temos apenas crianças sendo colocadas em cena e não crianças-atores.


Aqui, entro em uma questão importante, que é o nível de consciência daquilo que as crianças estão fazendo. Bebês e crianças de 2 a 4 anos podem não ter o nível de consciência sobre o que de fato é teatro e o que está acontecendo. Acredito, dessa forma, que as crianças podem se tornar atores apenas se a consciência, sobre o que está acontecendo, estiver clara para elas.



Considerações finais


Trabalhar com crianças exige muita cautela. Embora acredite na importância de se pensar na criança como ser social, completo, dotado de todas as capacidades do adulto, penso que temos que respeitar uma série de questões que dizem respeito à integridade física, social e psicológica da criança.


Vejo que existem competências que são esperadas do ator, que abrangem o ofício do ator adulto, que podem ter componentes fundamentais e importantes a serem desenvolvidos no não ator, seja adulto ou criança. Acredito que o ator adulto pode voltar à sua infância para resgatar aquilo que fazia em suas brincadeiras, buscando a credulidade infantil. Já a criança, que poderíamos chamá-la de não ator, pois não possui a “técnica”, não adquiriu um “savoir-faire profissional”, que não está “pronta”, pode tornar-se uma criança-ator, na medida em que ela está com a criatividade e a imaginação a todo vapor, querendo brincar, sabendo brincar. Afinal, muitas vezes, “escondidos atrás de seu savoir-faire, alguns atores [adultos] têm, no entanto, ‘dificuldade de jogar’” (RYNGAERT, 2009, p. 43).


Cada vez mais, fica claro que saber atuar não está necessariamente na quantidade de cursos que o ator fez, e sim, na capacidade aqui já colocada, de entrar e sair do espaço potencial de Winnicott, ou ainda, segundo Ryngaert, o jogador, “seria uma espécie de sonhador acordado” (2009, p. 39).


A figura do “sonhador acordado” é a figura com a qual mais me identifico, e que pode ser claramente associada à noção de criança-ator proposta. É assim que vejo a criança. Uma sonhadora, do ponto de vista daquela que sabe criar uma “vida paralela”, via Brook, e se deixar contaminar pela história que conta ou está vivenciando, mas “acordada”, ou seja, é aquela criança que não está alienada no processo, que consegue entrar e sair da brincadeira, como um bom jogador.


Mas, é importante ficar claro que não há regras, não há como generalizar, e o meu discurso não deve ser entendido como generalizante, mesmo porque não há como ter respostas “absolutas” ou “fechadas”. Talvez, um outro trabalho, com outras crianças, possa levar-me a reconstruir tudo o que foi colocado aqui, ou aprofundar e tentar mapear melhor o que é singular no trabalho das crianças-atores.


Recebido em: 22/03/2014

Aprovado em: 20/07/2014


Referências bibliográficas

BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2010b.

FRAIA, E. Como não ser ator. Revista Piauí, São Paulo, n. 28, jan. 2009.

Tiago de Brito Cruvinel e Jorge das Graças Veloso

João Pessoa, V. 5 N. 2 jul-dez/2014

LAFRANCE, M. Quand le réel entre en scène: la figure de l’enfant chez Castellucci. L’enfant au théâtre – Revue de théâtre, Canadá, v. 142, p. 90-97, 2012.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Psicologia e pedagogia da criança: Curso da Sorbonne 1949-1952. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar: práticas dramáticas e formação. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

SARMENTO, Manoel. Visibilidade social e estudo da infância. In: VASCONCELLOS, V. M. R.; SARMENTO, M. J. (Org.). Infância (In)visível. Araraquara: Juqueira & Marin, 2008. p. 25-49.

STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. 5. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

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